Domingo - mais um dia vinte e sete de
mais um mês de abril, anunciando o inverno a aproximar-se. O clarão do sol
anuncia que a vida já começou. Espreguiça-se nas direções da rosa dos ventos, a
alongar suas fibras... Mas, elas, já cansadas da horizontal não parecem
colaborar. Maria levanta, vai ao banheiro... E como de habito, liga o chuveiro
e observa a água cair por uns segundos, assim como quem vê a dança do dia
começar. A temperatura da água, o barulho do chuveiro, o vapor no vidro, convidam
Maria a riscar com as pontas dos dedos, seu nome... E no silêncio daquela casa,
Maria se prepara – Coloca as lentes de contato, pega seu livro, desce ate a
cozinha, requenta o café, come um caqui que ganhou do pomar do vizinho, prepara
um pão com manteiga, senta-se a sua mesa de vidro, abre o livro - Didática – A
aula como centro – de Marcos Masetto - da Coleção – Aprender Ensinar – Sim
justamente aquele livro que uma colega há dias atrás diz que esse tema estava ultrapassado
– DIDÄTICA - e que há literaturas mais atualizadas. Mas, como de costume, Maria,
antes, coloca uma música para ritmar com a leitura que fica de pano de fundo. Desobediente,
como sempre, busca entender, aonde, segundo a colega a Didática se perdeu.
Saboreia o livro e em questão de segundos volta ao seu tempo de faculdade, do curso de Pedagogia
- tempo em que clamava por didática. Não, não, nada havia envelhecido... Tudo
estava ainda ali, no mesmo lugar... O desejo de aprender, a ânsia de ensinar, a
sala de aula, os professores, os conteúdos, os alunos, a realidade do professor, a
realidade do aluno e própria realidade social, inclusive a Didática, ou a sua
falta, por todos esses lugares.
E
no silencio de sua casa, Maria escuta o telefone tocar. Domingo, nove horas da
manha. Maria baixa o volume da musica que já estava de fundos e atende o
celular.
- Bom dia! Sei que não é dia, nem horário,
mas me passaram esse numero e me disseram que você trabalha com Autista!
- Bom dia, com quem estou falando?
- Desculpe, nem me apresentei! Aqui é Carolina!
- Bom dia Carolina!
- No que eu posso lhe ajudar?
- Você trabalha com autista?
- Não, não, trabalho com Autista!
- Desculpe então, foi engano!
Em questão de segundos, Maria sente o lado
mudo da linha e o sinal telefônico desligado.
- Mal deu tempo de Maria buscar o
numero que havia ficado registrado e o telefone retorna a tocar.
- Mas Senhora, eu tenho esse numero de telefone aqui,
anotado e quem me deu, disse que você trabalha com autistas. - Então como você não trabalha com autistas?
- Senhora, entendo sua dúvida, porem a senhora não me deu tempo
de explicar. Atendo crianças “em desenvolvimento” e entre essas crianças em
desenvolvimento, algumas apresentam diagnósticos de autismo ou outras
síndromes. Portanto, para a educação, o sujeito vem muito antes de quaisquer
rótulos e seus diagnósticos.
Do outro lado da linha Maria escuta um
silencio ao mesmo tempo em que percebe que o telefone foi colocado no modo
viva-voz.
Maria, pensativa – espera por vez a manifestação do Carolina.
- Bem que me falaram que você era uma
pessoa de entendimento complexo.
Maria permanece em silencio. Porem, do outro lado da linha escuta uma voz
de homem a se apresentar.
- Sou Danilo, pai de Daniel, temos um filho
e todos estão dizendo por ai que meu menino é autista... E eu não acredito
nesse bando de incompetentes que estão dizendo que meu filho é Autista... Eu
quero que eles provem isso. Só por que o garoto é um tanto esquisito no seu
comportamento já vão dizendo que ele é isso ou aquilo. E agora quero ver quem é
que convence a mãe dele de que ele não é nada disso do que dizem!
Inicia-se
assim a discussão, de um jovem casal - ele idealizando o filho normal e a mãe, recuperando o filho ideal.
Maria
fica na escuta daquela discussão, enquanto o casal em voz alterada a esquece do outro lado da linha.
Meio
sem jeito, diante de tal situação... Lembra da musica que tocava a pouco e que
embalava sua leitura - aumenta o volume... A FESTA com a letra de Milton
Nascimento na voz de Maria Rita, a filha da eterna Pimentinha.
Maria, permanece na escuta, e sem poder
se manifestar de outra forma, aguarda o desfecho daquela discussão.
De
repente, da voz de Danilo, do outro lado da linha se escuta a seguinte pergunta:
como você sabe que essa é a musica que marca nosso namoro?
- Bom gosto!
- Eu
escolhi essa musica hoje cedo, justamente por ser uma musica que me acalma a alma. E por coincidência vocês me ligarem e estava ouvindo...
Desculpe foi o acaso!
- Ok! Doutora nos desculpe - Minha
mulher esta muito nervosa com essa historia toda, não sabe mais a quem
recorrer. E eu só quero que ela se acalme. Eu não sei mais o que fazer. Já
perdi meu filho para os diagnósticos e não quero perder minha mulher para meu
filho. Já fomos a vários especialistas e é um tal de nos dizer o que devemos
fazer... que eu já estou perdido... já nem tenho mais vontade de chegar em
casa.
-
Senhor Danilo! Entendo sua preocupação e também entendo a preocupação de sua
esposa...
Hoje
é domingo – dia de descanso. Dia de trégua para nossas dificuldades.
-
Posso lhe dar uma sugestão? Esqueça o filho autista, esqueça os diagnósticos,
esqueça os rótulos, esqueça as angustias e vão vocês três passear, curtir
essa manha de domingo. Passear na pracinha, assistir um filme, ou fazer algo de
interesses dos três. E quando Daniel estiver dormindo, vão vocês dois escutar
outra vez aquela musica, que uniu vocês e que representa o namoro de vocês.
Amanha,
retornarei a ligação para agendarmos um horário, pois no momento estou sem
minha agenda aqui. Mas lembrem-se vocês não tem um autista em casa. Vocês tem
um filho que se chama Daniel... “que também
quer ser abraçado, e que tem todos os sentimentos que também tocam nossas
almas, alegrias e tristezas. Se espalhando no campo, no canto, no gesto, no
sonho, na vida... - Mas agora é esse balanço, essa dança que nos toma, esse som
que nos abraça. E seguimos dançando o balanço malandro, e tudo rodando. Parece
que o mundo foi feito pra nós nesse som que nos toca. O pôr do sol e
aurora - Norte, sul, leste, oeste. Lua, nuvens, estrelas - A banda
toca, parece magia - E é pura beleza, essa música - Sente, parece que a
gente se enrola a corrente e então, de repente, você tem a mim.
Nesse momento os
segundos de silencio se eternizam, quando Maria escuta do outro lado da linda,
num tom de voz de alguém que esta já se entregando a uma batalha que esta
apenas se iniciando.
- Deve ser mais uma
dessas especialistas alucinadas prometendo a cura.
- Mas, Mulher! Em nenhum momento ela falou em cura... Ela
diz que é para termos calma e acreditar que Daniel esta se desenvolvendo, no
ritmo dele, e tem todo o tempo pela frente. Nos e que temos que nos acalmar e buscar
entender como se da o desenvolvimento infantil e ele é nosso filho, não é nosso
autista.
Maria percebendo que a
voz do casal já estava apaziguada, um tanto mais em tom de diálogo do que de
duelo, respira fundo. - Deseja-lhes um excelente fim de semana com a promessa
de que, na segunda feira retorna a ligação para o agendamento. Logo em seguida
Danilo pede desculpas por ter ligado em pleno domingo, agradece a atenção...
diz que segunda feira estaria retornando a ligação já no primeiro horário, e
que no momento todos iriam dar um volta na praça e com certeza após o almoço e
durante o descanso de Daniel eles estariam ouvido - A FESTA na voz de Maria
Rita.
Albertina Chraim