domingo, 27 de abril de 2014

31. O AUTISMO DE MARIA



         Domingo - mais um dia vinte e sete de mais um mês de abril, anunciando o inverno a aproximar-se. O clarão do sol anuncia que a vida já começou. Espreguiça-se nas direções da rosa dos ventos, a alongar suas fibras... Mas, elas, já cansadas da horizontal não parecem colaborar. Maria levanta, vai ao banheiro... E como de habito, liga o chuveiro e observa a água cair por uns segundos, assim como quem vê a dança do dia começar. A temperatura da água, o barulho do chuveiro, o vapor no vidro, convidam Maria a riscar com as pontas dos dedos, seu nome... E no silêncio daquela casa, Maria se prepara – Coloca as lentes de contato, pega seu livro, desce ate a cozinha, requenta o café, come um caqui que ganhou do pomar do vizinho, prepara um pão com manteiga, senta-se a sua mesa de vidro, abre o livro - Didática – A aula como centro – de Marcos Masetto - da Coleção – Aprender Ensinar – Sim justamente aquele livro que uma colega há dias atrás diz que esse tema estava ultrapassado – DIDÄTICA - e que há literaturas mais atualizadas. Mas, como de costume, Maria, antes, coloca uma música para ritmar com a leitura que fica de pano de fundo. Desobediente, como sempre, busca entender, aonde, segundo a colega a Didática se perdeu.
Saboreia o livro e em questão  de segundos volta ao seu tempo de faculdade, do curso de Pedagogia - tempo em que clamava por didática. Não, não, nada havia envelhecido... Tudo estava ainda ali, no mesmo lugar... O desejo de aprender, a ânsia de ensinar, a sala de aula, os professores, os conteúdos, os alunos, a realidade do professor, a realidade do aluno e própria realidade social, inclusive a Didática, ou a sua falta, por todos esses lugares.
E no silencio de sua casa, Maria escuta o telefone tocar. Domingo, nove horas da manha. Maria baixa o volume da musica que já estava de fundos e atende o celular.
         - Bom dia! Sei que não é dia, nem horário, mas me passaram esse numero e me disseram que você trabalha com Autista!
           - Bom dia, com quem estou falando?
           - Desculpe, nem me apresentei! Aqui é Carolina!
           - Bom dia Carolina!
           - No que eu posso lhe ajudar?
           - Você trabalha com autista?
           - Não, não, trabalho com Autista!
           - Desculpe então, foi engano!
          Em questão de segundos, Maria sente o lado mudo da linha e o sinal telefônico desligado.
      - Mal deu tempo de Maria buscar o numero que havia ficado registrado e o telefone retorna a tocar.
        - Mas Senhora, eu tenho esse numero de telefone aqui, anotado e quem me deu, disse que você trabalha com autistas. -  Então como você não trabalha com autistas?
      - Senhora, entendo  sua dúvida, porem a senhora não me deu tempo de explicar. Atendo crianças “em desenvolvimento” e entre essas crianças em desenvolvimento, algumas apresentam diagnósticos de autismo ou outras síndromes. Portanto, para a educação, o sujeito vem muito antes de quaisquer rótulos e seus diagnósticos.
        Do outro lado da linha Maria escuta um silencio ao mesmo tempo em que percebe que o telefone foi colocado no modo viva-voz.
             Maria, pensativa – espera por vez a manifestação do Carolina.
         - Bem que me falaram que você era uma pessoa de entendimento complexo.
        Maria permanece em silencio.  Porem, do outro lado da linha escuta uma voz de homem a se apresentar.
        - Sou Danilo, pai de Daniel, temos um filho e todos estão dizendo por ai que meu menino é autista... E eu não acredito nesse bando de incompetentes que estão dizendo que meu filho é Autista... Eu quero que eles provem isso. Só por que o garoto é um tanto esquisito no seu comportamento já vão dizendo que ele é isso ou aquilo. E agora quero ver quem é que convence a mãe dele de que ele não é nada disso do que dizem!
Inicia-se assim a discussão, de um jovem casal - ele idealizando o filho normal e a mãe, recuperando o filho ideal.
Maria fica na escuta daquela discussão, enquanto o casal em voz alterada a esquece do outro lado da linha.
Meio sem jeito, diante de tal situação... Lembra da musica que tocava a pouco e que embalava sua leitura - aumenta o volume... A FESTA com a letra de Milton Nascimento na voz de Maria Rita, a filha da eterna Pimentinha.
          Maria, permanece na escuta, e sem poder se manifestar de outra forma, aguarda o desfecho daquela discussão.    
De repente, da voz de Danilo, do outro lado da linha se escuta a seguinte pergunta: como você sabe que essa é a musica que marca nosso namoro?
        - Bom gosto!
       - Eu escolhi essa musica hoje cedo, justamente por ser uma musica que me acalma a alma.  E por coincidência vocês me ligarem e estava ouvindo...     
        Desculpe foi o acaso!
        - Ok! Doutora nos desculpe - Minha mulher esta muito nervosa com essa historia toda, não sabe mais a quem recorrer. E eu só quero que ela se acalme. Eu não sei mais o que fazer. Já perdi meu filho para os diagnósticos e não quero perder minha mulher para meu filho. Já fomos a vários especialistas e é um tal de nos dizer o que devemos fazer... que eu já estou perdido... já nem tenho mais vontade de chegar em casa.
        - Senhor Danilo! Entendo sua preocupação e também entendo a preocupação de sua esposa...
        Hoje é domingo – dia de descanso. Dia de trégua para nossas dificuldades.
      - Posso lhe dar uma sugestão? Esqueça o filho autista, esqueça os diagnósticos, esqueça os rótulos, esqueça as angustias e vão vocês três passear, curtir essa manha de domingo. Passear na pracinha, assistir um filme, ou fazer algo de interesses dos três. E quando Daniel estiver dormindo, vão vocês dois escutar outra vez aquela musica, que uniu vocês e que representa o namoro de vocês.
      Amanha, retornarei a ligação para agendarmos um horário, pois no momento estou sem minha agenda aqui. Mas lembrem-se vocês não tem um autista em casa. Vocês tem um filho que se chama Daniel... “que também quer ser abraçado, e que tem todos os sentimentos que também tocam nossas almas, alegrias e tristezas. Se espalhando no campo, no canto, no gesto, no sonho, na vida... - Mas agora é esse balanço, essa dança que nos toma, esse som que nos abraça. E seguimos dançando o balanço malandro, e tudo rodando. Parece que o mundo foi feito pra nós nesse som que nos toca. O pôr do sol e aurora - Norte, sul, leste, oeste. Lua, nuvens, estrelas - A banda toca, parece magia - E é pura beleza, essa música - Sente, parece que a gente se enrola a corrente e então, de repente, você tem a mim.
       Nesse momento os segundos de silencio se eternizam, quando Maria escuta do outro lado da linda, num tom de voz de alguém que esta já se entregando a uma batalha que esta apenas se iniciando.  
      -  Deve ser mais uma dessas especialistas alucinadas prometendo a cura.
    - Mas, Mulher!  Em nenhum momento ela falou em cura... Ela diz que é para termos calma e acreditar que Daniel esta se desenvolvendo, no ritmo dele, e tem todo o tempo pela frente.  Nos e que temos que nos acalmar e buscar entender como se da o desenvolvimento infantil e ele é nosso filho, não é nosso autista.
     Maria percebendo que a voz do casal já estava apaziguada, um tanto mais em tom de diálogo do que de duelo, respira fundo. - Deseja-lhes um excelente fim de semana com a promessa de que, na segunda feira retorna a ligação para o agendamento. Logo em seguida Danilo pede desculpas por ter ligado em pleno domingo, agradece a atenção... diz que segunda feira estaria retornando a ligação já no primeiro horário, e que no momento todos iriam dar um volta na praça e com certeza após o almoço e durante o descanso de Daniel eles estariam ouvido - A FESTA na voz de Maria Rita.
  
Albertina Chraim




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